segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O corpo está no comando e não deixará que você se esqueça disso por muito tempo

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Meu corpo me deu uma lição na noite passada. E eu mereci.
Eu vinha sentindo meu ritmo cainr nas últimas duas semanas, e não era sem motivo. Eu assumi mais compromissos pessoais e sociais e não dei conta deles de maneira satisfatória. Os exercícios diários pararam. Relaxei com minha alimentação. Bebi mais e dormi menos.
O corpo é maravilhoso. Ele conduz você por aí, mantém você em forma, manipula o mundo à sua volta. Ele faz seu trabalho. Ele gera afeição aos que o amam. Ele toca sua vida para você. Nos damos conta da sua generosidade geralmente apenas quando ela começa a diminuir.
O corpo também nos perdoa, talvez até demais. Ele aguentará um monte de porcarias antes de ficar bravo. Ele nos dá conselhos educados o tempo todo - a canseira das 15h, o mau humor, o intestino preguiçoso, as feridas estranhas, a boca seca.
Normalmente estamos muito mentalmente focados e o ruído de uma mente superativa pode nos distrair dos conselhos abruptos de nosso corpo. O corpo quer servir, dar prazer, deixá-lo ser você mesmo. Ele pode lhe permitir beber cinco ou seis doses, vez por outra, mas ele lhe punirá se você beber nove ou dez.
Se você não perceber os avisos subliminares, ele eventualmente lhe pegará pelo pescoço e se fará entender. Eu não mantive minha parte do acordo. Eu não cuidei do meu corpo e fui punido.
Então, pelos dois últimos dias, meu corpo me deu uma vingativa dor de garganta. Engolir era dolorido. Ele me deu dores de cabeça, náuseas e arrepios. Sofrer em posição fetal é sempre uma experiência humilhante. Não restam dúvidas sobre quem é que manda.
Foi difícil arranjar vontade para escrever, para limpar, para preparar o trabalho de amanhã. Estou escrevendo isso em meio a resquícios de náuseas e um pouco dopado pelo Neo-Citron. Tudo é colocado em modo de espera quando o corpo fica farto.
O corpo está bem ciente de sua própria posição executiva. Ele é o chefe, mas geralmente um chefe muito bonzinho. Ele oferece muita liberdade, para que você faça uso dela da forma que sentir prazer, mas ele está, em última instância, no comando sempre. Para lembrá-lo disso, ele derruba você em algum momento todos os dias, diretamente para o chão ou outra superfície horizontal. Ele deixa você embriagado e lento e você perde o interesse em praticamente qualquer outra coisa. Ele lhe tira a consciência. Ele revoga a liberdade que normalmente lhe concede durante o dia.
É fácil deixar o corpo no esquecimento, porque ele perdoa muito e é muito honesto. Normalmente sentimos que o chefe é a nossa mente. Mas a mente realmente recebe ordens do corpo. Quando o ritmo do corpo cai, os pensamentos deslizam para o modo auto-defesa: ressentimento, mentalidade vitimista, narcisismo. O corpo está suprimindo suas qualidades mentais mais altas, para voltar sua atenção ao que é mais urgente.
A mente então perde iluminação e sabedoria, e começa a se fixar no conforto. Muitos deles - mais café, outro filme no Netflix, um cigarro, uma bebida, uma rosquinha - não ajudam o corpo de forma alguma. Então ele aumenta a pressão até ter sua atenção e conseguir passar a mensagem clara: você está me impedindo de fazer meu trabalho.
O corpo é a base absoluta da pirâmide de Maslow. Se você não cuidar dele, ele destruirá tudo aos poucos até que você dê atenção à crise. Você não conseguirá ter foco no seu trabalho, você não terá sensibilidade em seus relacionamentos, seus sonhos entrarão em modo de espera e sua auto-confiança encolherá da mesma forma.
Estilos de vida variam muito. Algumas pessoas têm apenas deslises ocasionais. Elas comem e dormem consideravelmente bem, permanecem ativas e ficam doentes uma vez por ano, quando estão estressadas com o Natal. Outras pessoas comem mal a vida toda. Elas se acostumam a sentir-se preguiçosas ou doentes, então o corpo tem que ir mais além. Ele passa sua mensagem por meio de um ataque cardíaco, diabetes ou um derrame cerebral.
Quem quer que você seja, seu corpo está fazendo muito por você e, se você não paga seus impostos em dia, você será notificado.
***
A foto de J thorn explica tudo.
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O que os outros deixam para você

Imagem para O que os outros deixam para você
Há outros. Mais do que você pode compreender. Eles estão em toda parte e você conhecerá alguns deles.
Algumas destas outras pessoas se estabelecerão naturalmente como uma figura presente em sua vida, e mudarão a forma como você vê a vida. Isto se chama relacionamento. Se as pessoas permanecem por meses ou anos, sua relação com elas pode começar a parecer permanente.
Não é. Relacionamentos são condições, não coisas. Todos eles têm que terminar em algum ponto. Mas eles deixarão alguma coisa para trás para você.
Existem diferentes tipos, diferentes estilos de conexão entre você e Os Outros: educados, difíceis, românticos, platônicos, confusos. Nós tendemos a enquadrá-los em tipos diferentes - amizades, namoros, casamentos, parceiros de negócios - mas eles são todos fundamentalmente a mesma coisa. Duas pessoas encontram algo em comum, experimentam os pensamentos e ideias umas das outras, absorvem os valores umas das outras e aprendem a partir das histórias um do outro. Personalidades são absorvidas pelas outras pessoas quando estas pessoas ficam próximas o suficiente.
Isto acontece o tempo todo, e sempre é temporário. A afinidade termina e as partes divergem e se afastam. Pode ser depois de 72 horas viajando juntos (em inglês), ou depois de um estágio de verão trabalhando juntos, ou após 55 anos de casamento. Se nada mais terminar com o relacionamento, a morte o fará.
Isto significa que a vida é essencialmente uma viagem solitária. No entanto, você terá esta interminável multidão de visitantes, o que é bom. Personagens que você não imaginava aparecerão, ficarão por um minuto ou talvez alguns meses ou talvez muitos anos, e então deixarão você seguir viagem.
Como regra geral, dê boas vindas aos visitantes. O propósito deles é ajudar o viajante solitário a descobrir como desfrutar do mundo.
A maioria das pessoas vai entrar e sair da sua vida sem que você realmente perceba. Algumas, no entanto, terão grande impacto. Alguns visitantes serão decididamente especiais. Você saberá.
A experiência mais valiosa que uma pessoa pode ter é algo em comum com este tipo de pessoa. A característica que define uma dessas pessoas é que elas tornam impossível que você continue sendo a mesma pessoa quando elas partem.
Cada uma dessas pessoas, no momento em que seus caminhso divergem, terá modificado você de uma forma que é evidente para os outros que o conhecem.
Você provavelmente não entenderá bem o que está acontecendo no momento. No entanto, sentirá algo. A sensação de janelas se abrindo.
Como quer que este encontro se desenrole, sejam quais forem as experiências que o compõem, extasiantes ou detestáveis - alguns meses ou anos de estrada e você está diferente. Você está melhor. Algo que foi difícil agora é fácil, algo que foi assustador é agora familiar, algo sobre o que você se considerava cético, você agora ama.
Você ficará com algumas crenças que não tinha antes. Você valorizará certas coisas mais do que valorizava, e outras coisas, menos.
Talvez você nunca tenha pensado nisso, mas você já passou por isso muitas vezes até hoje. Isto acontecerá repetidamente. Você não tem ideia de quem está a caminho de conhecê-lo. Eles também não fazem ideia.
A qualquer momento, a qualquer tempo, a qualquer dia da sua existência, você pode olhar para sua vida toda como uma vasta coleção de experiências, e reconhecer que elas todas resumem quem você se tornou hoje. Quem você se tornou depende - a um grau que você jamais apreciaria - de com quem você se relacionou enquanto esteve por aí fazendo suas coisas. Você pode ter sido muitas pessoas diferentes.
Todos os relacionamentos são temporários. Eles mudam de forma e textura conforme o tempo passa, e eles eventualmente se vão.
Se foi um relacionamento especial - com um amor, um professor importante, um pai ou mãe - sua ausência pode ser um grande fardo. Quase tangível. Você pode sentir a presença de sua ausência. O Outro se foi. Uma escrivaninha vazia, um travesseiro não utilizado, uma porta aberta sem ninguém ali.
Mas você ainda está lá, e você está melhor do que era.
***
Foto de flabber degasky.
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A pessoa que você era continua lhe dizendo o que fazer

Post image for The person you used to be still tells you what to do
Assim que eu e meus amigos atingimos a idade exigida para frequentar bares, vi que nos dividimos em duas facções. Haviam os que iam a clubes para dançar e os que iam a um bar para sentar e beber e conversar em voz alta.
Eu odiava os clubes. A música era terrível, barulho de batida eletrônica. Acho que fiz três tentativas de me divertir desta forma, e então eu cometi um erro de longo prazo em termos de julgamento. Eu tirei sobre mim mesmo uma conclusão que eu não tinha qualificação para tirar: dançar não é para mim.
Como se vê, havia necessidade de muito mais investigação. Mas eu nem me preocupei. Eu achei que sabia. Eu suportei três noites maçantes bebendo chopp sob luzes azuis enlouquecidas, fingindo que estava feliz por ter saído de casa, mas silenciosamente me perguntando como alguém podia se permitir balançar seu corpo em sincronia com remixes acelerados de Rick Martin. Então, sem ao menos perceber, eu decidi que não sou do tipo que dança. Eu amo música, mas não o tipo de música que as pessoas dançam.
Uma generalização maluca como esta, se diz respeito a quem você é e sobre o que é ou não o seu tipo, pode afetá-lo por um longo período da sua vida. Pelos doze anos seguintes, todos os convites para sair para dançar foram negados por padrão.
Isto é tudo que você precisa para manter algo fora de sua vida: um único instante em que você diz "Isto não é pra mim." O problema é que não pensamos muito sobre o que exatamente constitui "isto" e portanto estamos sujeitos a descartar, apenas por associação, uma vasta gama de experiências que talvez sejam nosso tipo. Perdemos controle sobre nossos símbolos (em inglês).
Mais cedo, este ano, se quebrou - durante uma viagem, o que parece ser sempre o que eu estou fazendo nos momentos em que me dou conta de um conceito errôneo sobre mim mesmo que já durava muito tempo e acaba de morrer. Eu me encontrava sentado de pernas cruzadas no chão da casa de um amigo, falando sobre música com uma mulher que acabara de conhecer. Gostei dela de imediato e toda vez que ela mencionava algo que eu também gostava, me sentia mais próximo dela.
Quando ela disse que gostava de música dance eletrônica, senti uma pontada de decepção - um pouco menos de conexão, momentaneamente. De alguma forma, aproximadamente meia vida depois de eu ter passado os olhos pela primeira vez por uma sala cheia de pessoas, no final do anos noventa, me dei conta de que parte do que eu havia visto e odiado era algo que a atraía.
E isto é porque eu já sabia que aquilo não era pra mim. Eu sei disso há anos. Eu não danço. Eu acho que disse isso.
No entanto eu já sabia que o gosto dela era excelente, então eu explorei a música sobre a qual ela estava falando, e é claro que não tinha nada a ver como o choque eletro-pop que eu odiava quando adolescente. Era maravilhoso. Despretencioso e refinado.
E hoje eu danço. Eu amo dançar. Eu devia ter feito isso o tempo todo.
Até aquele dia - e felizmente, nunca depois - a imagem que eu tinha em minha mente sobre sair para dançar era a mesma que eu rejeitei doze anos antes: adolescentes bêbados dançando hinos pop insípidos em um terrível clube suburbano.
O que me surpreendeu foi o quão relevante ainda parecia minha opinião sobre dance music, até aquele momento. Parecia verdadeira, mas era baseada em dados antigos e inadequados, como provavelmente é grande parte de nossas opiniões. Ainda assim, tendemos a ver nossas próprias crenças como se fossem conhecimento (em inglês) real. Eu não havia me dado conta do quão rabugenta e obsoleta era minha impressão sobre "música dance". Na realidade, desde a última vez que pensei nisso realmente, o sol nasceu e se pôs quatro mil vezes, guerras foram travadas, fronteiras foram redesenhadas, grandes amores tiveram início e acabaram, gerações pereceram. Crianças que tinham cinco anos de idade na época, hoje dirigem carros e, de alguma forma, eu ainda sinto que tinha uma ideia muito clara do que eu estava perdendo.
Não sei afirmar com certeza o quanto me custou ter dispensado a dança desde cedo. Certamente centenas de noitadas maravilhoas. Certamente dúzias de possíveis amizades e conexões. Certamente isso dificultou meu progresso em relação a timidez e auto-consciência.
Naturalmente minha personalidade foi gradualmente se adequando às características da facção dos bares e se distanciando das da facção dos clubes - em direção a vibrações mais passivas, onde você sentava e falava com as mesmas poucas pessoas, e ficava distante das dinâmicas sociais mais ativas e íntimas. Hoje eu sei que a primeira é menos eu do que a segunda, dado o ponto de vista superior em que me encontro, aos 31 anos. Tudo que sei é que com certeza grande parte do que eu amo foi perdido.
Então essencialmente, aos trinta e um anos de idade, uma grande área da minha vida - como eu saio, como me divirto - ainda era decidida por um juíz de dezenove anos. Eu vejo agora que trabalho ruim este cara de dezenove anos vinha fazendo. Ele não me conhece. Ele não sabe os meus valores, o que realmente gira minha manivela, do que eu devo ter medo ou o que devo procurar. Meu eu de 29 anos não faria bem o papel de me dizer o que fazer. Eu sou uma pessoa diferente dele.
Isto acontece muito. Muito do que você faz hoje (ou não faz) foi decidido pela pessoa que você era há anos atrás, uma pessoa com menos experiência de vida e menos compreensão de seus valores. Sua identidade - no sentido de quem você é para você mesmo e quem você é para os outros - muda ao longo de sua vida, e a pessoa mais qualificada para decidir como gastar seu tempo será sempre quem você é hoje.
Mas frequentemente não funcionamos assim. Funcionamos a partir de conclusões tiradas anos atrás, frequentemente sem a menor ideia de quando as tiramos, ou por que. A maioria de nossas impressões de posicionamento são provavelmente baseadas em uma única experiência - um instante de desprazer ou decepção que o colocou distante de uma categoria inteira de atividades recreacionais, estilos de vida e empreendimentos criativos, para sempre.
Uma conclusão não é o ponto no qual você descobre a verdade, é apenas o ponto no qual a exploração para. Fazemos isso rápida e inconscientemente e os efeitos são muito duradouros. Rapidamente você passa a ter uma crença, um tipo de "fato" substituto em sua cabeça, remanescente de uma época em que você não conhecia nada melhor.
Muitas das coisas que parecem não ser para você, de fato são para você. A pessoa que você era ainda quer que você seja a pessoa que você era.
Crenças são colecionadas como revistas antigas, exceto pelo fato de que, ainda que comandem nosso comportamento, não as vemos realmente, então não pensamos em limpá-las ou selecioná-las. Você pode achar familiar a noção de desafiar suas crenças, mas como de fato faz isso na vida real? Você se senta com uma enorme lista e pensa sobre cada item novamente?
Isso é muito abstrato e muito entediante e, se você já tentou, sabe que não vai chegar a lugar nenhum. Em tempo real, na vida momento a momento, selecionar crenças sobre si mesmo resulta simplesmente em fazer conscientemente coisas que parecem não se encaixar naturalmente no seu perfil, apenas para ver o que acontece. Se você não está fazendo isso regularmente - coisas que parecem não ser do seu feitio - você está definitivamente perdendo muito do que está perto de ser perfeito para você.
Deixe frases como "não é meu tipo" ou "não é pra mim" se tornarem bandeiras vermelhas para você, onde quer que você se ouça pronunciando-as. Qual a idade da pessoa que decidiu isso? Foi mesmo uma decisão, ou apenas uma reação emocional? Quanto realmente você sabe sobre isso?
Pergunte, ou então saiba que seu estilo de vida ainda continua sendo dirigido por uma versão mais jovem e menos experiente de alguém que, francamente, não conhece nada a seu respeito.
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Foto de fabbio
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O que você quer nunca é algo

Imagem para O que você quer nunca é uma coisa
Ele definitivamente achou que não houvesse ninguém por ali, mas nós quatro pudemos ver seu autoconsciente de trás do alojamento, desde antes de ele ter estacionado. Ele saltou, abriu o porta-malas e deixou o motor ligado.
Ele tinha em torno de um metro e meio de altura. Do nosso ponto de vista, parecia um sweater com barba. Empunhando uma pá de plástico que pegou em algum lugar, começou a atirar para dentro do seu porta-malas a terra fresca dos vasos de plantas do tamanho de banheiras que estavam na avenida.
Levei apenas um momento para me dar conta de que o que estávamos assistindo era o desenrolar de um roubo premeditado de terra de qualidade. Os vasos haviam sido preenchidos pelo cara da manutenção do centro comunitário um pouco mais cedo no mesmo dia. Ele havia esperado até que ficasse escuro.
"Quem rouba terra?", perguntou meu amigo, em voz alta e para ninguém em específico.
O homem barbudo pausou, então, com uma visível ausência de pressa, colocou a pá no porta-malas e lentamente foi embora em seu carro, como se nada tivesse acontecido, apesar do porta-malas ainda estar aberto. Nós assistimos enquanto ele se afastava e seguia até o fim da quadra, porta-malas escancarado. Ele efetuou uma parada total no sinal de pare - algo raro de se ver em qualquer circunstância -, fazendo uso total do pisca e desaparecendo em seguida, enquanto nós ríamos.
Por um momento me bateu uma estranha sensação de culpa, porque nós estragamos seu plano. Mesmo que tenha sido um plano estúpido e egoísta, percebi que ele estava apenas tentando melhorar sua posição na vida de alguma forma ínfima, e esta foi a saída que encontrou. Dirigir para longe como um tolo com o porta-malas aberto enquanto nós ríamos dele foi um subproduto de um fiozinho de seu trabalho de vida cotidiano - sua busca pessoal por felicidade.
Podemos dizer que a busca pela felicidade é, sem dúvida, o que direciona tudo que fazemos, independentemente do quão estúpidas sejam essas coisas. Este é um fato peculiar da vida para nossa espécie: bem-estar é tudo o que queremos e precisamos, porém isso é muito delicado e inconstante e, na média, somos embaraçosamente ruins nessa busca.
À primeira vista, pode ser difícil acreditar que pessoas possam fazer coisas terríveis e autodestrutivas em nome da felicidade. Quase tudo que fazemos pode ser atribuído ao anseio pelos sentimentos de segurança, poder ou satisfação, os quais nossos corpos e mentes nos dizem ser os ingredientes da felicidade.
Estes três motivos surgem das partes mais elementares e antigas de nossos cérebros - eles são o que promete à criatura sua melhor chance de sobrevivência e prosperidade. A lógica não tem como competir com estas diretivas, não sem algum trabalho interno minucioso - autoexame e prática, os quais são ambos desconcertantemente subestimados como ferramentas para o cultivo de uma vida mais rica.
E então as pessoas fazem as coisas mais estúpidas na busca pela felicidade. Compram casas que não podem pagar. Envolvem-se em relações perigosas. Gastam milhares no Starbucks. Acumulam tanta velharia inútil em suas garagens que nem conseguem colocar mais seus carros dentro delas. Roubam lojas de conveniência. Explodem sinagogas. Fazem faculdade de Direito sem que realmente desejem isso. Bebem e dirigem. Pedem o mesmo item do menu todas as vezes. Brigam com pessoas nos bares. Vão ao Dr. Phil. Permitem que talentos estagnem e se esvaiam. Acumulam dívidas intransponíveis. Vivem exatamente como seus pais viveram e envergonham os outros por serem diferentes.
É tão bizarro que todos nós tenhamos este interesse único em comum, encontrar o bem-estar, e que gastemos tão pouco tempo realmente falando sobre ele. Você não acha que nossas escolas ensinariam isso.
Não fazemos isso, e provavelmente porque achamos que já sabemos como encontrar a felicidade, o que normalmente envolve a aquisição de algo que ainda não temos. Mais dinheiro, mais segurança, mais afeto. Em outras palavras, pensamos que felicidade se cria através de algum tipo de modificação no mundo material. Passar a possuir algo, eliminar uma ameaça, exercer controle sobre algo.
O erro que cometemos é que confundimos o que queremos com símbolos do que queremos. Nós seres humanos parecemos ser o primeiro animal apto a abstrair, e fazemos muito uso de símbolos. Certos eventos surgem para prometer sentimentos de liberdade, como quando você deixa o escritório numa sexta-feira, ou quando outra pessoa diz que vai livrá-lo de um projeto. Alguns eventos representam sentimentos de valor, como quando todo mundo ri da sua piada, ou quando sua paixão por alguém é correspondida.
Nós temos uma forma de avaliar tudo o que acontece e cada posse que adquirimos, em termos de quais sentimentos acreditamos que sejam prometidos por determinada coisa ou evento. O evento material e os sentimentos que este evento representa não são a mesma coisa. Mas nos esquecemos disso o tempo todo.
Tudo que procuramos e tudo que evitamos são sentimentos. Sentimentos governam o mundo. Eles constituem o único produto útil de todas as transações materiais entre humanos e seu meio ambiente. Exatamente da mesma forma que seu corpo não pode usar o alimento que ingere como energia até que ele seja convertido em glicose, não podemos de fato fazer uso destas coisas que buscamos até que elas nos proporcionem certos sentimentos. Sentimentos são a moeda da experiência humana. Eles são o único incentivo real.
Eu busco dinheiro porque parte de mim sabe que com ele eu posso comprar coisas e fazer coisas que me proporcionarão sentimentos de alegria, segurança, admiração ou liberdade. Eu quero estes sentimentos, então eu frequentemente penso que de fato é o dinheiro que eu quero.
Eu evito engarrafamentos porque uma parte de mim sabe que eles me proporcionarão sentimentos de frustração. Na verdade o que eu quero evitar são os sentimentos de frustração, mas frequentemente acho que uma grande quantidade de carros se movendo lentamente é por si só algo terrível.
Se eu não estou consciente de qual coisa material está simbolizando qual sentimento em minha mente, então eu corro o risco de confundir a coisa material com o que eu realmente quero, ou com o que quero evitar.
O acumulador disfuncional que você vê na televisão perdeu a noção do que realmente quer. Ele está tentando acumular sentimentos de segurança a partir da culpa que sente quando descarta coisas. Suas coisas simbolizam aquele sentimento de segurança para ele, então ele dorme em uma almofada depois de retirar as revistas de cima dela a cada noite.
O terrorista que explode a sinagoga está tentando e explodir seus sentimentos de frustração e impotência, decorrentes da vida em um território ocupado. Ele acredita que encontrará a purificação que precisa fazendo isso.
O marido sobrecarregado que compra muitas casas pensa que está de fato comprando alívio da vergonha que sente por ter crescido pobre. Ele não vai obter tal alívio, e ele pagará caro por sua tentativa. Ele pensa que a casa é o que ele quer.
Todas se tratam de decisões terríveis, tomadas exclusivamente na busca da felicidade.
Todas histórias horríveis no seu jornal são de pessoas em busca de um sentimento que pensaram que as colocaria mais perto da felicidade - ou, mais frequentemente, as colocaria mais distante da felicidade. Elas não se dão conta, no entanto, de que estão em busca de sentimentos. Elas acreditam que uma modificação particular no mundo material é o que elas querem. Um carro maior. Uma liquidação de seguro de vida. Um diploma em Direito. Uma amante morta. Um porta-malas cheio de terra.
Por que somos tão propensos a este engano? Porque nos foi dada uma poderosa ferramenta que ainda não sabemos usar. Nós somos milhões de anos de cérebros de répteis empacotados em uma fina camada de abstração e intuição e razão. É uma configuração poderosa, mas ainda estamos desenvolvendo as técnicas. É por isso que nunca faltaram filósofos tentando desmembrar isso tudo, argumentando sobre a melhor forma de viver.
Algumas formas são melhores do que outras, definitivamente. Não podemos fazer outra coisa a não ser tropeçar em algumas delas por aí afora no mundo, mesmo que não tenhamos intenção nenhuma disso. Mas nesse meio tempo, você estará fazendo melhor do que 90% do todo se habituar-se a pensar sobre quais sentimentos está realmente buscando quando sente que quer algo. O que você quer nunca é algo.
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Foto de tsuacctnt.
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Amanhã não é um dia adequado para fazer as coisas


Durante anos eu tenho tentado escrever a maior parte dos meus textos amanhã. Isso nunca funcionou.
Eu não consigo pensar em uma única vez em que eu tenha conseguido escrever meus textos em qualquer outro momento que não hoje.
Historicamente, eu tenho evitado fazê-lo hoje (de todos os dias) porque tenho medo de certos momentos que só podem ocorrer quando eu escrevo hoje. Posso estar na metade de um artigo e me dar conta de que ele não está indo a lugar nenhum. Então, ou o descarto para começar novamente, ou uma tento massageá-lo para transformá-lo em algo que eu não odeie. Este é sempre um momento doloroso e nunca quero que ocorra hoje.
Às vezes o que ocorre é uma versão ainda mais dolorosa deste momento. Eu posso achar que não apenas o artigo atual está uma porcaria, mas a maioria deles está. Não penso assim frequentemente, mas, quando acontece, dói.
Tais momentos não são assustadores de forma alguma quando eu sei que não podem ocorrer hoje. Quando eles são problemas de amanhã, eles se tornam notavelmente fáceis de lidar.
Então minha estratégia, na maioria das vezes, tem sido escrever amanhã. Normalmente eu escrevo hoje apenas quando eu tenho mesmo que fazer isso.
Em algum momento de Sábado de manhã, eu parei de querer escrever amanhã. De agora em diante, só quero escrever hoje. Mentalmente, é um lugar bem diferente do que eu estou acostumado - muito mais otimista, muito mais inspirador - e eu acabei nele após finalmente me deparar com um fato pesado e implacável: Eu não consigo escrever amanhã.
É uma impossibilidade mecânica. Não há nada que você consiga fazer amanhã. Eu jamais fiz alguma coisa amanhã e nem você fez.
Se fazer uma coisa hoje pode causar dor, então ou entregue-se a esta dor ou decida que você definitivamente não está preparado para fazê-la.
Talvez você não escreva, mas eu apostaria dinheiro como existe algo importante que você está sempre tentando fazer amanhã. Boa sorte. Amanhã não é um dia adequado para fazer as coisas.
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Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A maioria das vidas é vivida de forma padrão


Post image for Most lives are lived by default
Jamie vive em uma grande cidade no centro-oeste. Ele é redator para uma empresa de publicidade e é bom nisso.
Ele também é bom em pensar nas razões pelas quais pode se considerar feliz com sua vida. Ele tem plano de saúde e agora uma poupança. Muitos de seus amigos não têm nenhum dos dois. Sua namorada é bonita. Eles nunca brigam. Seu chefe tem senso de humor, não faz microgerência e deixa ele sair mais cedo na maioria das sextas-feiras.
Na maioria destas sextas-feiras, incluindo esta, ao invés de pegar o trem de volta ao seu sobrado suburbano, ele vai a um bar na cidade para encontrar seus amigos. Tomará quatro cervejas. Seus amigos sempre ficam até mais tarde.
Linda, a namorada de Jamie, normalmente chega quando ele está na terceira cerveja. Ela cumprimenta a todos com abraços educados e a Jamie com um beijo. Ele pede sua última cerveja quando ela pede uma única para si. Eles pegam um táxi até sua casa, jantam juntos e assistem a um filme no Netflix. Quanto o filme acaba, iniciam outro e não terminam de assisti-lo. Eles transam, então ela vai lavar o rosto e escovar os dentes. Quando ela retorna, é ele quem vai.
Nunca houve um dia em que Jamie sentou e decidiu ser um redator e ir morar no centro-oeste. Um par de advogados da empresa de sua ex-namorada o levaram para sair uma noite, quando ele tinha acabado de ser dispensado de escrever para uma revista de tecnologia, pagaram-lhe mais de cem dólares em rodadas de bebidas e deram a ele o cartão de visitas de seu chefe atual. Foi uma ótima noite. Isto aconteceu há nove anos atrás.
Seus amigos são do seu antigo trabalho. Colarinhos brancos, artísticos e inteligentes. Se um dos cinco não comparece ao bar na sexta-feira, eles almoçarão juntos durante a semana.
Jamie não é infeliz. Ele está entediado, mas nem mesmo se dá conta disso. Conforme vai ficando mais velho, seu tédio começa a se transformar em medo. Ele não tem problemas de saúde, mas pensa neles o tempo todo. Câncer. Artrite. Alzheimer. Ele está com trinta e oito anos, em forma, não tem planos de ter filhos e, quando realmente pensa sobre o rumo de sua vida, não sabe ao certo o que fazer consigo mesmo, salvo às sextas-feiras.
Em dois meses, ele e Linda viajarão para Cuba por dez dias. Ele está ansioso por isso neste momento.
***
Há algumas semanas, eu pedi a todos os leitores que compartilhassem o maior problema (originalmente em inglês) de suas vidas na seção de comentários. Eu já fiz isso antes (em inglês) - perguntar sobre o que se passa com você - e, toda vez que eu faço isso, eu percebo duas coisas.
A primeira é que todos têm problemas consideráveis. Não apenas situações difíceis ocasionais, mas o tipo de problema que persiste por anos ou décadas. Do tipo que se torna um tema de vida, que parece ser parte de sua identidade. Ao que parece, é típico do ser humano o sentimento de que algo grande está faltando.
A outra coisa é que eles tendem a ser um dentre os mesmos poucos problemas: falta de conexão humana, falta de liberdade pessoal (devido a situações financeiras ou familiares), falta de confiança ou auto-estima, ou falta de auto-controle.
A impressão do dia-a-dia e a qualidade de cada uma de nossas vidas se apoia em apenas algumas grandes bases: onde moramos, o que fazemos da vida, o que fazemos com nós mesmos quando não estamos no trabalho e com quais pessoas passamos a maior parte do tempo.
Causar uma mudança significativa em apenas uma dessas áreas fará necessariamente uma mudança significativa na impressão e na qualidade da sua vida cotidiana. Simplesmente não há como permanecer igual.
Fique na mesma cidade, mas passe a sair com um público completamente diferente e sua vida mudará significativamente. Você mudará. Fique na mesma carreira, mas troque de cidade e sua vida também mudará enormemente.
Pode ficar melhor, ou pode ficar pior. Você não sabe até que a mudança ocorra. É incerteza o suficiente para que a maioria das pessoas não se preocupe com nisso.
Mas deveriam se preocupar, regularmente. A vida cotidiana tem mais tendência a ficar melhor do que pior, pois uma mudança deliberada lhe dá a chance de ver se a sua nova situação lhe agrada ou não, e lhe dá uma segunda visão da situação anterior. Se a nova situação lhe agrada, então você está mais próximo de encontrar o que é bom para você, o que é ótimo para o seu senso de bem-estar.
Se a nova situação não lhe agrada, então você tem mais perspectiva sobre o que é que você já faz que gosta tanto. Seus valores se tornam mais claros e você gravita em direção a eles mais fortemente. Se você sai do meio rural, vai para a cidade e odeia isso, então você definitivamente aprendeu mais sobre o que é que realmente lhe agrada tanto em estar no interior. Isto é progresso. Isto é chegar mais perto do que você quer (em inglês).

Convivendo com o lance de dados

Para Jamie, e para a maioria de nós, aquelas quatro grandes bases não foram decididas conscientemente. A carreira que você acabou seguindo depende sumariamente do que você viu como opções quando estava apenas começando a entrar no mercado de trabalho. Aquele foi um período de tempo muito curto, durante o qual você só estava ciente de um número limitado de opções. Você foi adiante com o aquilo que fazia sentido naquela época. O resultado - o que você faz hoje - é mais ou menos puro acaso.
Amigos também estão, em sua maioria, presentes em nossa vida por padrão. A maioria de nós encontrou algumas pessoas incríveis e inspiradoras apenas permitindo que o acaso as entregasse, mas assim que temos algumas amizades estáveis, nos tornamos complacentes e paramos de procurar ativamente por amigos que realmente correspondem aos nossos valores e interesses, se é que já tenhamos feito isso alguma vez.
O lugar onde você mora é algo ainda mais aleatório, mais difícil de mudar e pode ter o maior efeito de todas as bases, porque ele determina o restante. Você nasceu em um lugar. Se você se mudou, isso provavelmente ocorreu por questões de trabalho ou relacionamento. Uma minoria das pessoas se muda para uma cidade específica porque pensa que será mais feliz lá do que em qualquer outro lugar. Estas pessoas estão procurando o lugar ótimo para viver para seus valores, ou ao menos chegar próximo disso. Mas a maioria de nós se torna estabelecida demais em um lugar para considerar seriamente mudar-se assim que se chega nos 30.
Amigos, locais e carreira tendem a definir o outro: o que você faz com seu tempo. Seus hábitos e seus hobbies. Suas rotinas, suas atividades típicas de sábado à noite, seu guarda-roupas, seus objetivos e projetos pessoais são todos sugeridos (e limitados) pelo seus padrões nas outras categorias. Se você cresceu em Nebrasca, você provavelmente não surfa. Mas o surfe pode ser exatamente a coisa que realmente giraria sua manivela como nada mais o faria, se você for sortudo o suficiente para descobrir isso.
Grande parte de nossas vidas consiste de condições nas quais caímos. Gravitamos involuntariamente em direção ao que funciona a curto prazo, em termos de no que trabalhamos e com qual público nos relacionamos. Não há nada errado em viver de forma padrão, necessariamente, mas pense nisso: qual a possibilidade dos padrões entregues a você por acaso estarem de alguma forma próximos ao que você considera realmente ótimo?
Em outras palavras, nós raramente decidimos conscientemente como vamos viver nossas vidas. Nós simplesmente acabamos vivendo de uma determinada maneira. Nós herdamos nossas vidas do acaso.
Existe toda probabilidade de que o que você herdou não esteja de forma alguma próximo ao que é melhor para você. As chances são muito pequenas de que não exista uma vizinhança drasticamente melhor para você lá fora, um círculo de amizades mas coeso, uma linha de trabalho muito melhor e uma maneira muito mais recompensante de seguir com seu dia do que a forma como você tem feito isso. Seu nível de satisfação e sensação de paz com o mundo dependem do quão bem seus valores correspondem com a vida que você realmente vive. Não há razão para acreditar que eles se corresponderão bem por acidente.
O curso de vida mais natural consiste em fazer o que você está acostumado a fazer, viver onde você está acostumado a viver, procurar o que você está acostumado a procurar. Então tenha cuidado. Estou convencido de que todos os meus maiores problemas - e muitos dos problemas na seção de comentários do artigo Qual é o seu problema? (originalmente em inglês) - são causados por seguirmos os padrões, seja por medo, seja por esquecermos de fazer mudanças significativas neles.
Culturalmente, nós fazemos muita manutenção, racionalização, adiamento e esforço, e não nos dedicamos tanto a pensar no que de fato é o melhor para nós e no quão drásticas seriam as mudanças necessárias para chegarmos a isso.
Então o que isso significa? Significa que, se você é uma pessoa normal, pode esperar que muitas das categorias da sua vida sejam definidas de formas altamente ineficientes, por padrão. Certas áreas da sua vida podem estar totalmente erradas para você e você não tem ideia do quão bom poderia ser do outro lado da cerca. Também significa que, onde quer que você reconheça uma fonte persistente de tristeza na sua vida, há provavelmente uma forma diferente de configurar sua vida que pode eliminá-la ou reduzi-la enormemente. Pode ser uma grande mudança, como livrar-se de seu cônjuge, ou pode ser apenas mudar-se para um bairro diferente na mesma cidade.
Grandes mudanças são intimidadoras, mas pense nisso - muitas vezes quando você ouve pessoas falarem sobre grandes mudanças nas suas vidas, como mudar de cidade ou carreira, um ano depois essas pessoas dizem que a mudança os colocou em um lugar muito melhor. Elas lhe dizem que não sabem como viviam antes.
Este é um sentimento que vale a pena procurar. Este sentimento específico - que surge na sequência de uma grande mudança - de se perguntar como era possível que você pensasse que já havia se dado bem antes.
As notas finais, caso eu não tenha sido claro:
É típico do ser humano sentir que algo enorme está faltando ou instável.
É comum que os aspectos mais importantes de uma vida humana (carreira, amigos, hábitos e moradia) sejam decididos ao acaso, e não de forma consciente.
O sentimento de que algo grande esteja faltando se deve provável e geralmente a um sério descompasso entre a sua situação atual e a situação ideal para você em um destes aspectos.
Causar conscientemente mudanças nos aspectos de sua vida que você tem aceitado por padrão pode resultar em mudanças dramáticas e imediatas na qualidade de vida.
Poucas pessoas fazem isso. Poucas pessoas fazem uma jornada deliberada em busca da sua cidade perfeita ou bairro perfeito, em busca de seus semelhantes de verdade. A maioria de nós vive setenta ou oitenta anos defendendo o que nos foi dado, porque achamos que isto é o que somos.
Em qualquer momento, a proposta de uma grande mudança tenderá a parecer fora de questão. Isto porque você acredita que você é o que você tem feito o tempo todo. Do outro lado de uma grande mudança, a ideia de continuar as coisas da forma que eram parecerá absurda.
Mas identidade é fluida. Você tem se tornado uma pessoa diferente o tempo todo, e após fazer uma mudança dramática, você pode descobrir que é mais você mesmo do que jamais foi antes.
***
Fotos por Fabio Bruna
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Qual é o seu problema?

Olá, amigos. É verão e eu estou indo voar novamente. De volta à minha cidade favorita para ver algumas das minhas pessoas preferidas e curtir o aniversário das minhas duas nações favoritas. As noites fugazes durante esta semana serão gastas no artigo da semana que vem (sei que já disse a alguns de vocês do que se trata), então hoje tenho apenas uma pergunta para vocês.
Sempre que pergunto algo à audiência, mesmo que seja apenas o que está acontecendo, fico comovido pela resposta. Por trás de cada um dos nomes na seção de comentários, está uma vida vasta e se desdobrando ativamente, e todos nós vemos muito pouco dela, normalmente. As histórias são sempre tão coloridas e atraentes, muito mais interessantes do que a ficção.
Também adoro a forma como os que comentam começam a se comunicar com os outros, ajudando-se mutuamente. Adoro que um grande contingente de pessoas com pensamentos (em sua maioria) semelhantes se reúna aqui regularmente.
Eu quero saber:
Qual tem sido a parte mais difícil para você?
Da vida, quero dizer. Não me refiro ao período mais difícil da sua vida, mas sim ao tema recorrente que sempre tem lhe causado tristeza, especialmente se você sente que a maioria das pessoas não tem problemas com isso.
Suas respostas e histórias são sempre muito úteis para mim, e para outros leitores também. Eu frequentemente acabo esquecendo o quão complexa é a história de todo mundo, e sempre que isso acontece, meus problemas aparentam ser o grande drama do mundo para mim. E isso não é bom para ninguém. Quando outras pessoas se abrem, isto nos dá uma perspectiva sobre cada uma de nossas próprias sacolas de martelos [do inglês "bag of hammers": gíria com significado aproximado de "estupidez"].
Desabafos são totalmente bem vindos, mas este realmente não é o objetivo. Eu quero especificamente ver as pessoas se expressarem sobre a área (ou questão específica) na qual se sentem mais bloqueadas. Ao longo da minha vida, eu permiti que certos problemas se agravassem, até mesmo por anos. Recentemente eu fiz grande progresso em certas questões vitalícias, e a quantidade de ação necessária para que houvesse uma mudança foi incrivelmente pequena.
Tudo que realmente precisei para começar a mudar as coisas foi finalmente expressar o problema para outra pessoa, em palavras. Existe algo mágico nisso. Estou pedindo que você faça isso aqui, mesmo que não tenha o costume de comentar.
Diga-nos. Qual é o seu problema?
***
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Por que f*demos

Um pensador profissional chamado Thomas Hobbes manteve por muito tempo em nossas cabeças a ideia de que nossos ancestrais foram pessoas patéticas, solitárias e medianas.
Um século e meio depois, Hobbes ainda é reverenciado por sua inteligência, ainda que sua fama estará para sempre mais ligada a sua infeliz afirmação de que a vida do homem pré-histórico era "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".
Atualmente, apenas poucos cientistas continuam empunhando a bandeira do "embrutecida e curta". Mesmo que a imagem do homem das cavernas paranoico, mudo, violento e solitário ainda persista na cultura pop (e algumas vezes em postagens mais antigas deste blog), há poucas evidências que apoiam esta linha de pensamento.
Já sabemos que o ser humano sempre foi uma criatura altamente social e foi esta característica que definiu a força de nossa espécie. Sabemos que os humanos foram nômades por praticamente toda sua existência, vagando em grupos de 50 a 150 indivíduos. Ao invés de estressados, violentos e solitários, eles provavelmente eram calmos, pacíficos e intensamente sociáveis a maior parte do tempo.
Afastar-se do homem das cavernas saqueador de Hobbe é mais uma daquelas fabulosas "quebras de paradigma" que acontecem às vezes na ciência, e que viram tudo de cabeça para baixo por algumas décadas (ou séculos, se houver igrejas envolvidas), até que estejamos todos na mesma página novamente – lembre-se de Copérnico e sua ideia absurda de que "a Terra não é o centro do universo".
Interessantemente, como consequência desta reformulação sobre a qualidade de vida na pré-história, está ficando claro que, durante toda a existência humana, exceto a fatia mais recente, os seres humanos foram não-monogâmicos. Os adultos aparentemente não formavam pares exclusivos de casais, como todos nossos livros ditam. Eles não se limitavam a ter filhos com um único parceiro, como a maioria das pessoas faz (ou tenta fazer, ou pensa que devem tentar fazer) hoje em dia.
Nossos parentes mais próximos, chimpanzés e bonobos, são ambos altamente "promíscuos", de acordo com os padrões predominantes da sociedade humana atual. Conforme o psicólogo evolucionário e autor Christopher Ryan, em seu livro Sex At Dawn (Sexo ao amanhecer):
Se você passar algum tempo com os primatas mais próximos dos seres humanos, verá fêmeas chimpanzés tendo dúzias de relações sexuais diariamente, com a maioria ou todos os machos dispostos, e sexo grupal desenfreado entre bonobos, deixando todos relaxados e sustentando suas complexas relações sociais.
Ryan reuniu uma montanha de evidências que dificultam encontrarmos razões convincentes para que continuemos sustentando a ideia de que somos biologicamente orientados para monogamia. Isto simplesmente não faz muito sentido. O único primata que claramente demonstra um comportamento monogâmico é o gibão, uma criatura altamente anti-social que vive em pequenos núcleos familiares, afastados de outros gibões pelos seus enormes territórios. Eles não fazem sexo frequentemente e não aparentam fazê-lo por diversão.
A visão obscura de Hobbe sobre nossos ancestrais tem sido largamente desbancada por todos os campos do mundo antropológico, mesmo os que têm uma opinião fortemente diferente em outros assuntos. Sabemos que eles provavelmente não viviam em ambientes altamente competitivos e orientados à escassez, e que tinham mais tempo dedicado ao lazer do que nós temos.
E sabemos que eles faziam muito sexo picante. Provavelmente mais do que você. Eles definitivamente não eram como os puritanos que surgiram nos últimos séculos, introduzindo cintos de castidade, envolvimento religioso e uma atitude vergonhosa em relação ao sexo.

Por que fazíamos tanto sexo assim?

Antes de mais nada, nós ainda fazemos. Apenas estamos muito mais desatentos a respeito. E não surpreenderia ninguém que a razão primária pela qual fazemos sexo não seja procriar. Fazemos porque nos faz sentir bem física e emocionalmente. Mais especificamente, nos permite compartilhar algo extremamente íntimo com outro ser humano. Na maioria das vezes, estamos definitiva e expressamente tentando não fazer um filho.
De todas as suas experiências sexuais, quantas delas ocorreram simplesmente porque você queria fazer um bebê? A vasta maioria das pessoas usa contraceptivos. Tentamos minimizar a produção de bebês, mas ainda estamos altamente interessados em sexo, o que torna claro que o sexo obviamente tem outro propósito extremamente atraente para os humanos.
Este propósito é de nos aproximar, concretizar laços sociais. Tendo um cérebro grande e um corpo relativamente fraco – um babuíno de 36kg pode despedaçar um homem de 90kg –, o que manteve os humanos vivos por centenas de milhares de anos foi a grande força de seus laços interpessoais.
Que outras espécies se entristecem e se tornam impotentes por tanto tempo, quando perdem um parente ou companheiro? Que outras espécies necessitam de uma década ou duas de atenção constante, para que consigam criar uma criança saudável e independente? Que outra criatura pode perder o controle completamente ao encarar nos olhos um companheiro próximo?
Nós nos vinculamos intensamente, talvez como nenhuma outra criatura jamais o tenha feito. E sexo, em especial o cara-a-cara, pode criar grandes ápices em termos de vínculo íntimo. Nós perdemos nossas pretensões. De uma forma hiper-íntima, ficamos nus para a outra pessoa, externa e internamente ao mesmo tempo.

Antes do "meu" e "seu"

Pense em como seria viver sua vida inteira em um grupo social de cem pessoas. Você conheceria todos bem rápido, e desenvolveria relações com eles durante décadas. Dissidentes e arruaceiros se regenerariam rapidamente ou seriam desprezados – os ciumentos e possessivos também seriam uma responsabilidade muito grande para o grupo todo.
Os seres humanos nunca conseguiram viver sozinhos. Até mesmo hoje, o maior dos medos humanos é de ser banido ou abandonado, pois, por centenas de milhares de anos, isto significou a morte. No mundo civilizado, onde sempre existe outro emprego, sempre existe outro círculo de amigos por aí, rejeição não significa morte, mas emocionalmente ainda é uma experiência devastadora para a maioria de nós.
Notavelmente, não havia a noção de propriedade privada, de "meu" versus "seu". Isto pode ser observado em muitas das tribos de caçadores-coletores remanescentes até hoje, nas quais esconder ou estocar qualquer coisa é visto como flagrante de um delito por toda comunidade.
O comportamento possessivo não era tolerado ou mesmo entendido, portanto a ideia de exclusividade sexual era simplesmente tão absurda e ofensiva para com os outros quanto armazenar comida. É claro que é normal e saudável para seres humanos, se sentirem atraídos por múltiplas pessoas, e nossos ancestrais não teriam encontrado muitas razões para restringir suas atividades íntimas a um companheiro único.
Fêmeas acasalando com múltiplos machos evidenciavam que nenhum macho poderia ter certeza absoluta sobre qual criança era geneticamente sua. Não havia teste de paternidade e todos eram parentes tão próximos que não havia características suficientes nas crianças para distingui-las, tais como cor de cabelo ou dos olhos.
Pense por um momento no significado disso: é como se, durante a maior parte da existência humana, não fosse normal para um homem saber quais crianças eram de fato suas.
Para a sobrevivência do grupo, isso era bom. Antes de tudo, significava que os machos não matariam crianças filhas de outros machos (como ocorre em algumas espécies). Porém, mais importante, significava que todo adulto sentia-se responsável por cuidar de todas as crianças do grupo. As fêmeas amamentavam crianças de outras mulheres, e nenhum homem tinha motivos para ver uma criança como "sua" e outra como "não sua". Todas as crianças eram vulneráveis, todas precisavam de alimento e proteção e amor, e a sobrevivência do grupo dependia da sobrevivência das crianças, independentemente da sua paternidade. Paternidade incerta, como dizem os biólogos, manteve os grupos caçadores-coletores unidos e mais suscetíveis a sobreviver do que seriam, se tivessem se fragmentado em núcleos familiares com preferências claras sobre quem deveria receber mais ajuda.
Portanto, o resultado de uma cultura sexual que as pessoas modernas poderiam chamar de "promíscua" foi que o grupo inteiro era uma enorme família, com uma evidente ausência de alienação, possessividade e competição, se comparado com a nossa forma atual de interação com os outros.

Por que tudo mudou?

Diante de nossos olhos, normas sociais estão mudando. A maioria das pessoas não suspira e cochicha mais ao ver casais inter-raciais. O presidente dos EUA apoiou oficialmente o casamento gay. Hotéis não exigem mais que você seja casado para alugar um quarto com alguém do sexo oposto. O normal muda, e pode mudar rápido.
A monogamia continua a ser aceita pela maioria como "o jeito das coisas serem" entre os seres humanos, em regra geral. Ela está certamente prescrita como algo inegociável na Bíblia e em outros textos religiosos. Mas as relações humanas datam de muito antes deles.
Há mais ou menos dez mil anos atrás, as pessoas descobriram como se estabelecer. Ao invés de vagarem em busca de alimento, elas começaram a cultivar sua própria comida em um mesmo local, ano após ano. Isto causou diversas mudanças imediatamente no mundo todo.
Pela primeira vez, as pessoas podiam ficar em um mesmo lugar. A comida podia ser armazenada e acumulada. Assentamentos tornaram-se permanentes. A população explodiu e as pessoas passaram a viver mais juntas. Moedas foram implementadas. Instituições sociais se formaram: igrejas, leis, forças armadas.
Pela primeira vez, riqueza pode ser acumulada. Uma pessoa podia acumular muitas vezes mais recursos que outra. Nunca antes houve uma forma de alguém se tornar vastamente mais poderoso do que outro, pois grupos nômades só podiam carregar o necessário e procuravam novas pastagens quando os recursos diminuíam. O excesso era inútil.
Mas então todos viram que não havia limites para a acumulação e que, quanto mais acumulavam, mais seguros ficavam. Então ninguém mais sentia que já tinha o bastante – havia sempre o desejo de ter mais. Combine isso com com o crescimento populacional disparando e a competição por recursos se tornou a nova regra.
Isto mudou completamente a dinâmica social entre os seres humanos, em todas as escalas. A existência humana rapidamente passou de um ambiente de abundância para um ambiente de escassez. Grandes desequilíbrios de força e privilégio tiveram início, quando antes eram impossíveis, e eles continuaram a se espalhar pelos últimos dez mil anos.
O que isso tem a ver com sexo?
A maior mudança que a agricultura causou foi fazer com que determinadas pessoas se prendessem a determinadas áreas de terra. A noção de propriedade se tornou crucial pela primeira vez. Quem quisesse sobreviver, ao invés de contribuir para um grupo coeso e autossuficiente, tinha que garantir o direito de trabalhar em determinada área de terras, possivelmente em detrimento dos interesses competitivos de outros. Esta pessoa teria que contribuir como uma fração de uma economia maior e impessoal. Sua vida dependia da sua habilidade para fazer isso.
De forma semelhante com o que ocorre hoje em dia, quando um fazendeiro morria, outros queriam a terra, e a questão de quem teria o direito legal sobre ela tinha que ser resolvida. O procedimento mais intuitivo era que o filho do fazendeiro a herdasse.
Então, pela primeira vez, tornou-se absolutamente necessário para o homem, saber que seus filhos eram seus. Numa época anterior à existência de testes de paternidade e controle de natalidade, só havia um meio do homem ter esta certeza:
Ele precisava estar 100% certo de que sua mulher nunca, jamais fizera sexo com qualquer outro homem.
A partir daí o homem passou a controlar a terra por meio do controle da sexualidade da mulher, e o novo "normal" esculpido por esta tendência econômica permanece como nosso modelo primário até hoje: monogamia sexual. Para se garantirem economicamente, os homens necessitavam de virgens e não toleravam qualquer sinal de não-monogamia. A fidelidade foi fortificada por contratos sociais viciados, incluindo ditames religiosos e crenças culturais, pelas quais as mulheres eram humilhadas, apedrejadas ou pior do que isso, até mesmo por expressarem o desejo de ir para cama com outro homem.
Isto foi o início de uma cultura de desigualdade e repressão sexual com a qual nós, infelizmente, continuamos acostumados. Até mesmo em sociedades progressistas, mulheres que queiram ter diversos parceiros sexuais são frequentemente taxadas de vadias, por ambos os sexos. Homens não são vistos da mesma forma.
Por séculos debateu-se – no meio acadêmico masculino, é claro – se as mulheres poderiam sentir algum prazer no sexo. O consenso no meio acadêmico era de que o sexo era algo voltado apenas aos homens, e era uma mera conveniência para que as mulheres pudessem ter a única coisa que realmente desejam: filhos.
Então parece que a monogamia é um fenômeno cultural que se originou da economia em todos os lugares. Não há necessariamente algo intrinsecamente errado com isso, mas observando os índices de divórcio, não se pode pensar em outra coisa a não ser que isso é um buraco redondo, enquanto os humanos – pelo menos biologicamente – carregam blocos quadrados.
É sabido que na América do Norte, a maioria dos casamentos termina em divórcio, e não por morte, e a maioria dos casamentos inclui infidelidade. Casamentos sem sexo são comuns, mesmo que não seja rotina falar sobre isso.
Ainda estamos nos recuperando de pressões culturais asininas de longa data, que nos dizem que não podemos ter muitos parceiros sexuais, não podemos ser gays, não podemos ser filhos de mãe ou pai solteiros, não podemos fazer sexo grupal sem sermos vistos como pessoas estranhas ou hippies, não podemos ter dois parceiros ao mesmo tempo sem que isso seja traição, e não podemos decidir não ter filhos sem sermos hedonistas egocêntricos.
Felizmente, os famosos estudos de Kinsey, publicados após a guerra, revelaram ao mundo o que ele sempre temia e sabia: que todo mundo estava fazendo tudo o tempo todo, mas apenas não deixando à vista. As pessoas estavam fazendo sexo oral, sexo anal, sexo fora do casamento, sexo grupal, sexo com acessórios, sexo com as próprias mãos e dedos, sexo gay, sexo dress-up, sadomasoquismo e, às vezes, não fazendo sexo.
A variedade e o volume de gostos e prazeres sexuais eram enormes, na realidade, mas publicamente todos apresentavam a mesma faxada: relacionamentos monogâmicos, tementes a Deus e modestos.

De onde vem o normal?

No dia em que nascemos, cada um de nós abre seus olhos e começa a construir um mundo que nos parece "normal". Ele é construído do zero, experiência por experiência, e o que construímos depende de um lance de dados sobre onde nascemos e quando. Então o que consideramos "o jeito que as coisas são" pode ser apenas o jeito como elas têm sido por uns poucos séculos, ou até mesmo décadas e apenas localmente.
Nós temos a tendência de projetar nosso próprio "normal" atrás e adiante no tempo e na vida de milhões de pessoas, considerando muitas pessoas como equivocadas no processo. Ironicamente nos referimos a estas práticas relativamente recentes e a estas regras sociais – das quais a monogamia é apenas uma – como "tradições" e qualquer desvio delas equivale a trair o que é natural. Noventa e nove porcento da existência humana ocorreu antes das formas "tradicionais" sequer existirem.
Eu sei que algumas pessoas que estão lendo não fazem ideia de onde quero chegar com isso ou por que estou abordando monogamia, mas eu sei que muitas pessoas por aí estão acenando positivamente com a cabeça. Deve haver um motivo muito bom para ser tão difícil fazer as coisas funcionarem do jeito "tradicional". O que é tradicional na sua cultura pode colidir fortemente com a sua constituição biológica e emocional.
Eu estive em relacionamentos onde jamais esperavam que eu demonstrasse achar outra mulher atraente. Expor esta verdade era, de alguma forma, errado e ofensivo para minha parceira. Ainda assim, esta é a verdade mais básica e óbvia da sexualidade humana – que sentimos desejo por mais de uma pessoa ao longo de nossas vidas. Mesmo assim, de alguma forma, a perspectiva normal é que a coisa certa a fazer é esconder isso da pessoa que você supostamente mais ama.
Pense em quantas pessoas sofreram das piores dores de coração, só porque não aceitaram esta realidade básica. Se isso for normal, pode ser uma boa razão para não ser normal.
***

Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude.
Fotos de sinabeet e GulinKopec.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O meme da internet mais útil que você já viu para se sentir bem

 Post image for The most useful feel-good internet meme you’ll ever see
Você provavelmente já viu o gráfico acima [se você não o vê, clique aqui], e talvez lhe tenha parecido algo brilhante e que poderia mudar sua vida quando você o viu. É improvável, no entanto, que ele tenha mesmo mudado a sua vida.
 
Os estóicos usavam este mesmo fluxograma desde sempre, e se funcionou para eles é porque eles sabiam quais as habilidades que precisavam para chegar ao grande "Então não se preocupe" (Then don't worry) no centro. E praticavam-nas. Eles achavam que qualquer outra coisa na vida não valia a pena.
 
Este gráfico faz sentido, mas deixa de fora a parte mais difícil. As setas fazer parecer que ir de "se preocupar" para "não se preocupar" é possível com apenas alguns trechos da viagem irrestritos e instantâneos, como se fosse o jogo "Snakes And Arrows", porém sem as cobras.
 
Mas algumas das setas representam habilidades de vida de alto nível que precisam ser identificadas e praticadas se você estiver mesmo a fim de chegar ao cobiçado "Não se preocupe" ali no centro conta própria. Vou explicar passo-a-passo o que realmente seria necessário para ir de um ponto ao outro, não que eu esteja me considerando um especialista em nenhum deles.
 
Mesmo se você não enxergar este mapa como a sua maneira normal particular de agir, todos nós estamos em algum lugar dele em determinado momento, sempre tentando chegar ao meio. Algumas pessoas ficam presas em ponto por dias, semanas ou anos.
 
Eu vou abordar exatamente o que é necessário para colocar este mapa em prática, de forma que ele possa ajudar mais do que ser simplesmente um meme de internet para se sentir bem. Há oito setas sobre as quais irei falar. Aqui estão elas, marcadas com uma caneta vermelha:
 


1
Respondendo se você tem ou não um problema é o passo mais fácil. Se você se sente à vontade, pelo menos neste momento você não tem um problema.
 
Alguns podem argumentar que você pode ter um problema em sua vida e ainda assim se sentir à vontade neste momento. Você pode estar com contas em atraso, sem nenhuma perspectiva de reembolso, mas ainda assim estar cercado por amigos e a vida não está lhe dando problemas.
Eu afirmo que qualquer aspecto de sua situação de vida é apenas uma condição de sua vida, e não se tornará um problema até que ele interfira no seu estado emocional. Em sua vida, sempre haverá algo instável, algo que você ainda não conseguiu assimilar. Mas é difícil chamar isto de problemático se atualmente não exerce um impacto emocional sobre você.
 
Isso não quer dizer que você deva deixar para mais tarde a tarefa de agir frente a situações que não são geradoras de preocupação neste momento. Eu sei que se eu agir agora, quando estou relaxado, o peso sobre mim será menor do que se eu deixar para muito mais tarde quando já estiver estressado com outras coisas. Eu agi antes mesmo disso se tornar um problema. Você pode estar em um estado despreocupado e ainda assim agir preventivamente, para estar melhor preparado contra os estados de preocupação que podem aparecer mais adiante.
 
Então, se você se sente preocupado, a resposta à pergunta é "Sim." Avance para o 3.
 

2

Se você não tem preocupações no momento, então a vida é boa. Você desliza para baixo pela seta 2 para o Santo Graal de toda a vida humana, que é um senso de centralização e ausência de sofrimento. Cada coisa que os seres humanos fazem é, em última análise para chegar aqui. Parabéns! Espero que você permaneça aqui.
 

3

A seta 3 pode ser vencida rapidamente. Se você sente ansiedade (conhecido como dukkha, para os curiosos sobre budismo), então você tem um problema.
 
Parece que todo mundo passa automaticamente da seta 3 para a seta 4, mas é perfeitamente possível ficar preso na seta 3. Você pode perceber que não livre de problemas, mas ainda assim insistir que o problema não é seu, mas de outra pessoa.
 
Um homem poderia dizer "Minha esposa tem um problema: ela nunca escuta o que eu digo." O problema é dele, mas pelo fato de ele atribuir a culpa a outra pessoa, ele pode não reconhecer o problema como seu. Assim, ele nunca vai assumir a responsabilidade para si, nunca fará nada sobre isso, exceto queixar-se, e nunca chegará ao centro do mapa.
 
Se você admitir que o problema é seu, mesmo se você não admitir que a culpa é sua, siga para a seta 4.
 

4

Ok, você já admitiu que tem um problema, e que ele é seu. Agora você se encontra em uma posição mais poderosa do que os reclamadores crônicos presos na seta 3. "Você pode fazer algo sobre isso?" (Can you do something about it?) não é a mais simples das questões e talvez não seja a melhor forma de perguntar. Há uma coisa que você sempre pode fazer para entrar em um estado de despreocupação: suicidar-se. Mas esta geralmente não é uma opção praticável.
 
"Há alguma coisa sensata que você pode fazer que poderia aliviar estas preocupações?" é uma pergunta melhor, mas você não vai se sentir inclinado a se perguntar isso se você ainda não identificou o problema como seu. Nosso marido reclamante da seta 3 não se perguntar isso, porque em sua mente a única ação a ser tomada é a de sua esposa.

Para ir adiante a partir daqui, para 5 ou 6, você deve pensar sobre o que poderia causar alguma mudança sobre a condição que está lhe preocupando. Você precisa ter uma ideia honesta do que é capaz, o que seria muito custoso, qual a sua força e qual não é.

Você pode chegar à conclusão de que não há nada prático que possa ser feito, e a condição que liberaria as preocupações terá que permanecer até que outra pessoa ou deus ex machina a conserte, ou até que ela naturalmente se torne algo com o que você não se importe mais.

E é claro que isso acontece. De fato, de todas as dezenas de milhares de preocupações que você já teve, em algum momento todas se foram, exceto algumas ainda ativas. A maioria se foi sem que você tenha precisado fazer qualquer coisa.

Se você chegar à conclusão de que não há nada que pode fazer, siga para o 5. Senão, siga para o 6. Se você não chegar a conclusão nenhuma, então fique aqui para o resto de sua vida.
 

5

A maioria das preocupações, se você se ativer a ver através delas, seguirá este caminho. Você não fará nada à respeito delas.

Muito frequentemente elas se tornam irrelevantes por conta própria. Você pode ter se preocupado com o que iria dizer quando seu chefe percebesse seu erro, e ele nunca se manifestou, ou então se manifestou rindo do ocorrido. Houve preocupação, você não tomou nenhuma atitude e o estouro que você temia nunca ocorreu.

É seguro afirmar que, independentemente de quem você seja, a maioria das coisas com as quais você se preocupa jamais acontecem.

Outras vezes suas preocupações se tornam realidade. Exatamente como você temia, você é reprimido, constrangido, abusado ou ignorado. E você sobreviveu, como todas as outras vezes.

Devo ressaltar que preocupar-se com um acontecimento antes de ele realmente acontecer não o tornou nada mais prazeroso para você. Preocupação não o protegerá de nada, mas apenas lhe indicará o momento em que alguma atenção racional pode ser necessária em sua vida.

Note que você não precisa decidir conscientemente que não fará nada sobre o problema em questão para que ele seja dirimido por conta própria. Mesmo assim, foi isso que aconteceu. Na verdade é muito raro que uma pessoa decida conscientemente que não fará "nada". Se você nunca fez isso, acredite: isso pode lhe fazer sentir muito bem.

Somente se você ativamente se comprometeu a "fazer nada" em resposta a uma preocupação que teve, você pode seguir para seta 8, o último trecho antes da despreocupação completa. Caso contrário, você se preocupará agora mesmo com a próxima etapa.
 

6

Ok, há algo que você pode fazer. Você tem um problema, o reconheceu como sendo seu e vê que há algo que pode fazer a respeito. Mas você não está nem na metade do caminho.

Apenas dar-se conta de que há algo que você pode fazer não alterará seu estado de preocupação. Comprometer-se a fazer alguma coisa é o que aliviará sua preocupação. Prossiga para seta 7.
 

7

Assim que você conclui que “Sim, eu posso fazer algo a respeito”, você finalmente está direcionado ao Santo Graal. Mas apenas se você realmente estiver decidido, quando diz "Sim".

Esta é a segunda seta mais difícil de lidar, pois para que o mapa funcione completamente, você tem que vencer este trecho. E isto significa que você terá que contar consigo mesmo para fazer o que tem que ser feito.

Isto se chama disciplina e parece haver uma severa minoria de pessoas que se descreveria como bem disciplinados. Portanto, aqui não é um mau lugar para se tornar excepcional.

Disciplina é a habilidade de colocar-se em ação independentemente de seu estado emocional. Você ainda estará em meio a preocupações neste ponto e deve saber como fazer seu corpo e sua boca se moverem mesmo que você ainda não esteja totalmente confortável.

A utilidade deste mapa está intimamente ligada à disciplina. Se você não consegue lidar com este detalhe, não há como chegar ao "Não se preocupe". Você pode apenas esperar que as coisas se resolvam por si próprias. É isto que eu tenho feito na maioria dos casos durante a minha vida e, de forma geral, funciona.
 

8

Este passo é o mais difícil de todos, pois é onde você transforma um problema em um não-problema. Você não o resolveu e não vai resolvê-lo. Pode até ser impossível de resolver. Pode ter implicações pelo resto de sua vida. Mas lembre-se: o que faz de um problema, um problema é o que ele causa em você emocionalmente.

Se a situação permanece, suas emoções tentarão abalar a paz. Elas tentarão fazer você reclamar, desejar e ter esperanças. Elas tentarão colocar você em um cenário que não está acontecendo — um mundo bizarro onde não há desvantagem que você possa ser forçado a aceitar, nenhuma dor com a qual você terá que lidar.

Geralmente algo acontece em nossas vidas e reagimos emocionalmente com algum tipo de "Isto não pode estar acontecendo!" Então eventualmente, se não desaparece por si próprio, nós superamos e aquilo deixa de parecer um problema. Este é um processo de três etapas, que já aconteceu cinquenta mil vezes na sua vida, e é apenas o passo do meio que faz você sofrer.

A seta 8 é a grande sacada dos muito inteligentes e muito hábeis. Eles sabem como ignorar ou minimizar este passo do meio — a explosão altamente emocional num "Isto não pode estar acontecendo!", o qual nada mais é do qeu um protesto irracional contra nós mesmos. Os inteligentes vão rapidamente do acontecimento à assimilação deste. É necessária somente a decisão de não fazer nada (obtida na seta 5) e um comprometimento em dar boas vindas a o que quer que aconteça, como se tivessem escolhido que acontecesse.

Krishnamurti falava exatamente disso. Para ele, isto era a única ação sensata a se tomar: envolver-se com o que acontecesse como se o fato não fosse de forma alguma indesejável. Desta forma você se livra da dor de resistir à realidade e ainda tem uma opção sobre agir ou não em resposta. Ele viveu comprometido com o "não se importe com o que acontecer".

Quer ele eventualmente tomasse o caminho da seta 5 ou da seta 6 para chegar ao estado de despreocupação total, ele acabaria neste estado de qualquer maneira, a menos que se recusasse a ou fazer o necessário para que a mudança ocorresse (seta 7) ou aceitar a realidade como ela se apresenta (seta 8).

Se eu sou bom nisso? É claro que não. Mas não importa o quão mal nisso eu seja, isso realmente me ajuda a identificar a seta na qual eu estou trancado. É uma questão de eu não ver o problema como sendo meu, de eu não decidir se posso ou não fazer algo a respeito ou se sou muito preguiçoso ou medroso para fazê-lo? Certamente isso clareia muito diversos dilemas.

Espero que você tenha ficado excitado quando viu o gráfico "Não se preocupe" no Facebook ou no Stubleupon (ou outro lugar). Chegar ao "Não se preocupe" parece complicado, mas não é. É apenas difícil.

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Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Como fazer a coisa certa, para pecadores como você e eu


Post image for How to do the right thing, for sinners like you and me
Tendo crescido em uma família culturalmente tradicional (porém não religiosa), pecado não era algo em que eu pensasse muito. Quem lidava e falava sobre isso era o pessoal da igreja.
Mas, sim, eu pequei e continuo pecando. Hoje em dia, eu mesmo me vejo como uma pessoa que peca frequentemente, e estou trabalhando isso.
Para mim, esta palavra tem um significado diferente do que tem na cultura contemporânea. Quando criança, eu aprendi (e você também, provavelmente) que pecar é fazer algo realmente ruim. Se você pesquisar, verá que geralmente isso se refere a violar algum código de conduta religioso.
Então, por definição, se você não é religioso, você não tem como pecar, pois você não tem um código de conduta para violar.
Ainda assim, eu considero que este seja um conceito útil, mesmo para os não religiosos. Como mencionei anteriormente, eu penso que religiões são essencialmente metodologias de desenvolvimento pessoal que fugiram do controle. Elas são filosofias e mitologias destinadas a ajudar-nos a navegar a vida humana de forma a causar o menor dano possível, tanto para nós mesmos quanto para os outros. [Para uma explicação mais detalhada de por que eu penso assim, leia isso.]
Os infames "Sete Pecados Capitais" do Cristianismo, por exemplo, não são diferentes, em termos de objetivo, das proibições budistas de atos sexuais que causam danos, da mentira e do roubo. Todos se tratam de avisos claros que certos tipos de comportamento conduzem quase que invariavelmente ao sofrimento, seu e do próximo, portanto, se você não está a fim de sofrer, pode ser do seu agrado evitar de fazer tais coisas. O pecado bem definido existe para criar um sinal vermelho em sua mente nos momentos em que você está prestes a fazer algo prejudicial. Este sinal vermelho pode ser bastante útil como uma ferramenta que lhe permita tornar-se uma pessoa melhor.
A palavra, no entanto, se tornou um pouco carregada com o passar do tempo e acabou passando a ser utilizada exclusivamente para acusar outras pessoas, como vou explicar a seguir. Pecadores!
A palavra "pecar" tem sido mais comumente reconhecida como significando "errar o alvo". Não por fazer algo ruim por si só, mas por cometer um engano. Em termos modernos, talvez a expressão mais próxima do significado original de pecar seja "errar feio" [o texto original diz "fuck up"].
Não é preciso, no entanto, que a palavra venha acompanhada desta bagagem moral terrível, ainda que fique subentendido que você fez algo que causou algum prejuízo. E sempre que causamos prejuízo, pode-se afirmar que existe alguma questão moral em jogo em algum ponto. Moral não é nada além da consideração do dano causado por uma ação particular, certo?
Mas eu penso que, ao invés de definir pecado como algo "contra as regras", algo pelo que seremos punidos (por Quem ou O quê tenha sido que inventou estas regras), é mais útil pensar que o pecado seja uma transgressão moral contra nós mesmos.

Pecado diário

Nós todos causamos danos da forma como vivemos, em especial a nós mesmos. Nós reagimos às mesmas coisas todos os dias, em benefício de ninguém. Tráfego, longas filas, os hábitos de certas pessoas. Nós adiamos, mesmo quando aprendemos mais e mais que é muito mais fácil arregaçar as mangas e fazer acontecer.
Trata-se de uma ação bastante humana: prejudicar-se sem motivo. Eu me pergunto como outros animais fazem isso tão pouco. Como a noção de pecado surgiu como uma resposta à tendência óbvia do ser humano de causar danos, se descartarmos toda a bagagem religiosa, podemos utilizar o conceito de pecado em nossas próprias vidas para reconhecer aqueles momentos nos quais estamos prestes a fazer aquela coisa besta, aquela coisa ruim, ser preguiçoso, agir em autodefesa, e agirmos de forma diferente.
Cada um de nós é diferente, portanto nosso pecados comuns são diferentes também. Alguns dos meus pecados mais comuns são:
  • colocar tudo para fora quando não há uma razão inteligente para fazer isso
  • evitar interações nas quais eu corra o risco da dor social (como rejeição ou embaraçamento)
  • entregar-me ao gratificante comportamento risco zero, que não oferece nenhum benefício de longo prazo (tipo quando fico navegando indefinidamente na internet)
Talvez o seu pecado seja:
  • abrir a geladeira quando está entediado
  • dar o tratamento do silêncio ao seu parceiro quando você está frustrado com algo
  • deixar a louça na pia quando vai dormir
Pecados tendem a minar suas tentativas de se aperfeiçoar, modificar padrões, fugir da rotina. Estar atento sobre onde o pecado ocorre em seus ciclos comportamentais é como encontrar a chave certa para o parafuso, aquele lugar do qual você pode se libertar e não voltar mais. Conhecer seus pecados é um solo fértil para grandes avanços na vida.
Os pecados religiosos tradicionais tentam resumir todos estes comportamentos de autodefesa a categorias muito mais gerais de comportamentos do tipo "não-não", geralmente definidos por palavras isoladas, tais como "ganância" ou "orgulho", mas estas palavras não costumam nos dar pistas suficientes sobre de que outra forma podemos lidar com as coisas. Eu penso que, se queremos mudar significativamente nossas vidas, consequentemente pecando com menos frequência, precisamos ser mais específicos e mais pessoais.

Quem é, de fato, o Diabo?

Eu sei que um dos meus pecados perpétuos é convencer a mim mesmo que eu posso me exercitar amanhã ao invés de hoje. A desculpa é sempre a mesma mentira escorregadia – minha ginástica diária é curta e intensa e eu poderia tranquilamente fazer duas sessões em um dia, então eu posso tranquilamente deixar de fazer hoje e fazer amanhã. É claro que, no dia seguinte, novamente não quero me exercitar e isso acaba sendo duas vezes mais tentador, porque eu tenho que fazer duas sessões, não uma. Então caio num círculo vicioso.
É quase como se eu tivesse um lado mal, um sacana tentando destruir tudo que é bom e virtuoso. Não é sem sentido tentar dar um nome a este sacana. Que tal "Satã"? Ele me sacaneia e me faz pecar. Às vezes eu acredito que ele não existe e é justamente nesta hora que ele é mais perigoso.
Seria bastante lógico e fácil projetar uma narrativa religiosa sobre tudo isso. Você poderia considerar a parte medrosa, enganosa da sua mente como se fosse o Diabo. Você poderia considerar que a parte virtuosa, intuitiva e não reativa da sua mente como se fosse Deus. E poderia ver suas lutas pessoais como conflitos entre o bem e o mal.
Pecar nos permite experimentar a mesma dor repetidamente, enclausurando-nos em um ciclo de dor que se manifesta na vida das pessoas como Inferno. O Inferno do vício, o Inferno do autodesprezo, o Inferno do adiamento.
O inferno é o que você cria quando peca. Não é um lugar para onde você vai quando morre, caso tenha chegado ao fim da sua vida uma pontuação baixa. Estou convencido de que o Inferno, descrito pelos sábios autores das escrituras religiosas, não é nada mais do que ciclos de sofrimento pessoais e autocriados. E se você alguma vez experimentou a agonia de se contorcer na grande dor (que você tem) em um ciclo de vida, então você sabe se isso pode ou não ser considerado um Inferno.
Eu não acho que estas narrativas mitológicas sejam um quadro tão irracional de se pintar, mas aí corremos o risco de transformar a coisa toda num desenho animado, fazendo destes conceitos úteis, entidades concretas que supostamente lutam fora de nós, no mundo em geral.
Mas, mesmo que essa guerra seja real, o único ponto de influência que você tem nela – e, portanto, o único ponto que considera importante – é como você se conduz. E é isso que toda religião sempre foi. Os nomes, os eventos, as fábulas, a criação das histórias – tudo isso são apenas alegorias e cenografias para ajudar o ser humano a entender como viver sem acabar no Inferno.
Em outras palavras, ver o pecado como qualquer coisa menos como algo importante para sua conduta é uma válvula de escape para longe da sua responsabilidade pessoal. Você pode desviar o holofote de si mesmo, desviar do sofrimento que está criando, concentrando-se em falhas comportamentais dos outros.
E isso nos proporciona uma sensação extraordinária de alívio – poder sentir-se bem consigo mesmo por um momento, porque você vê que outra pessoa está pecando de forma muito pior. Pense nisso. Todos nós temos nos impelido a fazer certas coisas a vida toda! É uma batalha que dura a vida toda e não temos muitas folgas, exceto quando nos preocupamos com os erros que os outros estão cometendo.
É muito mais fácil e muito mais atraente zombar dos "pecados" dos outros, do que concentrar-nos em superar nossos próprios demônios, e penso que em algum ponto isso acabou se tornando um tema mais proeminente na prática espiritual do que autorreflexão e autodesenvolvimento. O pecado passou a significar julgamento, ao invés de crescimento pessoal.

Conheça seus pecados

Todas as religiões têm sua lista de pecados. Há certos comportamentos que parecem ser insensatos – universalmente – para qualquer um que não goste de sofrimento. Ganância, preguiça, inveja, luxúria, raiva e assim por diante. Você sabe o que são. E eles são reais, geralmente. A maioria das pessoas é propensa a machucar a si e aos outros por entregar-se à ganância, inveja, luxúria, gula ou os outros.
O problema é que eles são muito genéricos e não existe um ponto claro no qual se possa aplicá-los ao seu comportamento. Quando vou a qualquer lugar onde há um monte de pessoas num dia quente de verão, eu verei dúzias de belas mulheres vestindo blusinhas e minissaias. Eu experimentarei sentimentos de luxúria. Estou pecando? Estou ferindo a mim ou a outros? Onde está o perigo? O que eu deveria fazer?
Talvez haja algum perigo aí (especialmente se houver uma barraquinha vendendo cerveja). Eu poderia fazer alguém se sentir desconfortável ou inseguro, olhando para seu decote. Eu poderia pisar nos calos de alguém, caso flertasse com uma mulher já comprometida. Eu poderia perder o juízo e me entregar a um encontro sexual impulsivo que causaria um sofrimento enorme para minha namorada ou esposa. Fica claro que vale a pena reconhecer a força que sentimentos lascivos têm, pois isso lhe permite evitar danos que podem ser causados em decorrência deles.
Mas, se um pecado é descrito para mim por um livro sagrado como simplesmente "Luxúria", não há forma de eu saber como proceder, uma vez que o perigo parece estar em todo lugar. Em algumas culturas, os homens insistem que as mulheres não possam exibir seus corpos, pois, se o fizerem, estarão provocando comportamentos pecadores. Portanto elas devem vestir sacos de pano.
Isto é insano e é o que ocorre quando a ideia de pecado deixa a esfera da responsabilidade e reflexão pessoais, passando a uma instância de dogma – onde toda reflexão sobre o por que é considerada como já tendo sido tratada há séculos. A autoavaliação sobre como se deve viver jamais deveria ser considerada "finalizada".
"Reconhecer meus pecados", neste caso, pode significar estar ciente de que flertar com alguém pode não representar perigo, mas sexo sem proteção é definitivamente algo que possibilita ferir a mim ou a outros. Se eu pratiquei tal transgressão no passado, devo pensar sobre onde exatamente eu posso sentir a tentação de pecar e sobre o que fazer para evitar isso.
Os pecados aos quais cada um de nós está suscetível são diferentes. Para você, pode ser apertar o botão "soneca" nove vezes e não ir meditar de manhã. Para mim, pode ser visitar o Reddit enquanto tomo meu café da manhã, ao invés de preparar um almoço para levar ao trabalho.
Cada pecado tem uma hora da verdade, na qual você tem uma chance de se salvar. Ao invés de apertar o botão "soneca" pela segunda vez, você se senta e coloca os pés no chão, antes que o Diabo assuma o controle. Ao invés de clicar em mais um link interessante/enfurecedor, eu fecho a tela do laptop e vou pegar o tupperware.
Eu não estou sugerindo que você se sente e comece a inventariar todos os seus pecados, depois faça uma lista dos "Dezesseis pecados capitais do Fred Smith". Você precisará ser capaz de reconhecê-los conforme forem acontecendo. Você deve saber identificar aquele momento em que você pode fazer a coisa errada, novamente.
Você precisa descobrir como agir de forma diferente. Assim que descobrir, para colocar em prática, só precisa mover seu corpo, ainda que não seja o que você quer fazer. Sente-se, coloque os pés no chão.
Saber o que seu corpo deve fazer neste momento é crucial. Então você só tem que se atirar de corpo nisso e deixar para trás aquele momento de tentação, ou então o Diabo encarnará em você. Na hora da verdade, quando percebo que estou tentando me convencer a adiar minha ginástica, eu sei que preciso tirar as calças, afastar a mesa do café, pegar o kettlebell e começar o aquecimento.
Mexa seu corpo antes que o Diabo o faça e nunca deixe que ele o convença de que você não é um pecador também.
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Foto de Isidr Cea
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude.