segunda-feira, 15 de junho de 2015

Querendo ou não, você é livre

Imagem para Você é livre, goste ou não
Certa noite, eu fui jantar com minha família em um restaurante Tailandês. Eles nos colocaram perto do fundo, não muito distantes da porta da cozinha.
Uma garçonete muito irrequieta nos trouxe os menus, encheu nossos copos d'água e nos disse para avisá-la se precisássemos de algo ou se tivéssemos alguma dúvida sobre qualquer coisa.
Quando ela retornou, fizemos nosso pedido. "Perfeito!", disse ela, com um grande sorriso e levando nossos menus. Ela se dirigiu à cozinha. Assim que passou pela porta, sua voz mudou. Ela conversava com a equipe e nós podíamos ouvir cada palavra.
“Ó, Meu Deus, eu estava tão mal hoje pela manhã! Não conseguia parar de vomitar. Meu namorado teve que segurar meu cabelo para trás, para mim." Ela prosseguiu falando sobre a corrida até o bar, os drinks, a corrida do taxi, os amigos estúpidos que não apareceram. Muitos detalhes e palavrões.
Então ela veio pela porta novamente, sua cara de garçonete retornou, e pegou os pedidos de mais algumas mesas. Ela retornou à cozinha novamente. Mais brincadeiras profanas. Quando trouxe nossa comida, ela tinha um largo e completo sorriso e foi realmente difícil não sorrir.
Na hora, eu não sabia, mas Jean-Paul Sartre escreveu sobre uma cena semelhante para ilustrar uma tendência humana que ele chamou de má fé. Seu garçom em um café parecia estar completamente enfeitiçado pelo seu papel como servente. Se movia muito rápido, de forma muito apressada. Ele falou sobre o prato do dia com um entusiasmo que nenhuma comida na vida real poderia fornecer. Sua gesticulação era tão ridiculamente de garçom que ele parecia ter perdido a consciência do fato de que ele era uma pessoa com livre arbítrio, como se não houvesse nada além do seu cargo atual.
Sartre acreditava que temos muito mais liberdade do que tendemos a reconhecer. Nós habitualmente negamos isso para nos protegermos do horror que é aceitar a completa responsabilidade sobre nossas vidas. A cada instante, somos livres para agir da forma que quisermos, mas frequentemente agimos como se as circunstâncias tivessem reduzido nossas opções a uma ou duas formas de seguir adiante.
Isto é má fé: quando convencemos a nós mesmos que somos menos livres do que realmente somos, para que não precisemos nos sentir responsáveis pelo que fazemos, em última análise, de nós mesmos. Realmente parece que você precisa levantar às 7h toda segunda-feira, porque restrições como seu trabalho, a agenda da sua família e suas necessidades corporais não lhe dão outra escolha. Mas isto não é verdade — você pode programar seu alarme para qualquer hora e é livre para explorar o que muda na sua vida quando você faz isso. Você não precisa fazer as coisas da forma que sempre as fez, e isso é verdade em qualquer momento da sua vida. Ainda assim, nos sentimos em um caminho extremamente rígido a maior parte do tempo.
Nós costumamos pensar sobre a liberdade como algo que pode tornar a vida apenas mais fácil, mas ela pode, na realidade, ser algo opressivo e até mesmo assustador. Pense nisso: nós podemos pegar, a qualquer momento, qualquer uma das infinitas estradas que nos conduzem ao futuro, e nada menos que todo o resto da nossa vida se desdobrará baseada em cada escolha. Então pode ser muito aliviador dizermos para nós mesmos que temos menos alternativas disponíveis, ou até que não temos escolha.
Em outras palavras, ainda que queiramos a melhor vida possível, se a vida tiver que ser algo decepcionante, nós ao menos gostaríamos que isso fosse culpa de outra pessoa.

Quando a liberdade assusta, fingimos que ela não existe

Tão logo eu aprendi sobre o conceito de má fé, comecei a perceber que sou culpado dela o tempo todo. Eu posso deixar para depois uma estressante, porém valiosa ligação telefônica até que ela já não seja uma opção possível, para então dizer a mim mesmo que a oportunidade me escapou por entre os dedos acidentalmente. Posso fingir não ter ouvido um comentário crítico, para que eu não precise decidir como responder a ele. Eu costumo dizer a mim mesmo que não consigo fazer nenhum trabalho de valor a menos que eu tenha duas horas ininterruptas para fazê-lo.
Eu tenho um longo histórico de má fé. Talvez você também tenha. No ensino médio, eu me lembro de ter ido o mínimo possível atrás de oportunidades escolares, pois achava melhor não me inscrever para alguma delas do que me inscrever e vê-la ser atribuída a outra pessoa. Em seguida, eu poderia até reclamar que um cara como eu jamais poderia competir com todos os outros alunos exemplares que trocavam ideias com os professores.
Eu também fiz uso de má fé para racionalizar sobre meus níveis extremos de timidez, tornando a vida muito mais difícil neste processo. Alguma parte de mim sabia que ser um adulto funcional significava aprender como se envolver em um bate-papo. Mas isso era assustador, então eu disse a mim mesmo que bate-papos eram desinteressantes e não tinham valor algum, e que eu me abstinha deles sem motivo, não por medo. Como muitas pessoas extremamente tímidas, eu não marcava encontros no ensino médio porque tinha medo da rejeição, mas dizia a mim mesmo que o motivo era meu alto padrão de exigência.
Provavelmente todos nós já fizemos esta: você fica temendo uma das tarefas da sua lista porque ela demanda uma decisão difícil. Então você a deixa de lado, ignorando lembretes que atribuiu para si mesmo, colocando coisas menos importantes na frente dela. Você faz isso ainda que uma parte de você saiba que a tarefa terá que ser feita de qualquer forma e que atrasos apenas tornam as coisas piores para você. Você cria desculpas para justificar por que não pode fazer a tarefa hoje — "Eu deveria ter uma noite de sono melhor antes de começar a lidar com isso" — mesmo que ninguém além de você mesmo está sendo enganado, e nem mesmo você se beneficie do fingimento em afirmar que ainda não pode fazer a tarefa. Mas você de fato recebe aquela dose de alívio quando cria uma nova desculpa.
Sartre Todos estes tipos de comportamento constituem formas de negar nossa própria liberdade. Se elencamos todas as nossas opções, a coisa óbvia a ser feita pode ser algo intimidador. Uma vez que você reconhece que de fato não é impossível parar de fumar, então você simplesmente precisa parar de fumar. Quando a liberdade assusta, fingimos que ela não existe.
Má fé é mais fácil de ser identificada nos outros do que em nós mesmos. É praticamente certo que você já conheceu pessoas que reclamam de sua situação, insistindo que ela está fora de seu controle quando obviamente não está. Quando é realmente óbvio, dizemos que ela está se fazendo de vítima. Contamos para nós mesmos histórias que nos colocam numa condição de objetos inanimados — como bolas em uma mesa de bilhar, ao invés de como jogadores.
Um antigo amigo meu expressava perpetuamente uma insatisfação com seu corpo acima do peso, e tinha um motivo nocauteador para cada possível medida que pudesse tomar para perder peso. Correr prejudica os joelhos. Restrições na dieta levam a distúrbios alimentares. Levantamento de pesos é para estúpidos. Academias só querem tirar vantagem. Obviamente estas não eram barreiras reais, mas sim formas de alegar que as circunsâncias por si só eram as responsáveis por seus problemas, e que ele não tinha outra opção.
Essencialmente, todas as instâncias de má fé são encenações de algum tipo, nas quais agimos como se estivéssemos de mãos atadas. Ficamos tentando nos convencer (frequentemente através do convencimento de terceiros) que realmente não conseguimos fazer a coisa certa, quando na verdade nós simplesmente não queremos fazê-la.

A vida é um campo, não um corredor

A má fé nos leva a viver de forma não-autêntica — vivendo valores dos outros por medo de vivermos os nossos. Isto é inerentemente auto-defesa.
Sartre queria que realmente sentíssemos nossa liberdade, como uma sensação quase física — a sensação de caminhar por um corredor, percebendo então que você esteve em um campo o tempo todo. É um sentimento emocionante ir de forma consciente pelo outro caminho em um momento no qual você normalmente agiria com má fé. Faz você sentir como se tivesse descoberto um lugar oculto de novas habilidades e possibilidades, e que estas salas secretas estão em toda parte.
Onde quer que você tenha um sentimento de "isto é exatamente como deveria ser", provavelmente ali existe um pouco de má fé. Por muitos anos eu pensava não ser capaz de escrever um artigo depois das 17h — a energia e o foco simplesmente não estão mais presentes, então estou praticamente sentenciado a passar o fim da tarde lendo, assistindo algum programa, saindo ou fazendo algo que não seja trabalhar.
Não tenho ideia do quanto esta velha e autodestrutiva mentira já me custou. Não existe uma barreira às 17h. A linha é completamente imaginária. Existe apenas uma forte aversão ao meu trabalho quando esta hora do dia se aproxima e eu finjo que isto é algum tipo de lei natural.
Nossas vidas são cheias de linhas imaginárias. A hora de ir dormir não é algo real. É uma escolha, todas as vezes. Ir ao trabalho é uma escolha. Almoçar é uma escolha. Colocarmo-nos pra baixo é uma escolha. Cumprir um prazo é uma escolha, e perdê-lo é uma escolha, tanto quanto queiramos acreditar que cada um dos resultados tenha sido inevitável o tempo todo.
A percepção da má fé não a cura, mas a torna mais difícil de ignorar. Podemos nos permitir sofrer por causa de certos problemas durante anos, se pensarmos que eles estão acontecendo em nós, como ocorre com o clima. Mas uma vez que você perceba uma condição particular da sua vida como fundamentalmente voluntária, tal condição está com os dias contados.
Eu não sou capaz de descrever para você o quão forte o sentimento é, mas assim que passa das 17h, eu realmente sinto como se não conseguisse escrever. É como se a parte do meu cérebro responsável por esta tarefa se fechasse como a porta de uma loja num fim de tarde de domingo.
Mas quando eu de fato me sento às seis ou sete ou oito da noite e começo a escrever, as palavras vêm como em qualquer outro horário. A porta sempre esteve aberta; eu apenas desviei dela de novo e de novo e de novo.
R
Foto do tunel por Joe Del Tufo. Foto de Sartre de autoria desconhecida e domínio público.
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.

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