
Mentir é uma parte normal de ser educado.
Leitores de longa data sabem que não aceito postagens de convidados aqui, a não ser de duas ou três exceções que são pessoas que convidei. Mas recebo solicitações o tempo todo e tento faze-las desistir afavelmente.
Mesmo que muitas delas estejam provavelmente jogando suas inscrições nos emails em massa, eu pondero que em cada caso possa haver uma pessoa sensível e esperançosa lendo minha resposta, e não quero machuca-la sendo frio. Então, quando rejeito sua oferta, eu adiciono uma mentira. Eu digo que receio.
"Receio que não aceite postagens de convidados no Raptitude."
"Eu não aceito postagens de convidados no Raptitude," soa muito insensível, eu acho, então algum hábito ridículo me leva a afirmar que este fato me assusta, de forma que o remetente saiba que eu acho minha própria política tão imperdoável e insensível quanto ele acha.
Nossos costumes de linguagem estã ocheios deste tipo de isoladores. A verdade, em muitos e muitos casos, é simplesmente bruta ou embaraçosa demais para ser dita como um fato, então adicionamos pequenas ficções.
"Olá, Sr. Smith, eu estava pensando se poderia emprestar sua caminhonete no Sábado à tarde."
Na minha cultura, é normal termos receio de até mesmo perguntar "Posso emprestar sua caminhonete?" Então você liga para o Sr. Smith não para perguntar algo a ele, mas para declarar à ele algo sobre o que você tem pensado. Presumivelmente, você acredita que ele é o tipo de pessoa que vai achar interessante saber sobre quais tópicos você tem ponderado ultimamente, então você ligou pra ele para colocá-lo a par. Talvez ele então terá a ideia de oferecer sua caminhonete para você, de forma que assim você não precisará mais ficar imaginando se é possível que você possa tomá-la emprestado no Sábado à tarde.
Em um restaurante, eu percebo que quando decido que quero o enrolado vegetariano, o que eu não digo ao garçom é "Eu quero o enrolado vegetariano." Eu não quero ser grosseiro. Ao invés disso, eu digo que eu gostaria do enrolado vegetariano, como se não estivéssemos falando do nosso desejo imediato, mas dos hipotéticos em algum universo periférico. Essencialmente eu estou dizendo "Se nos encontrássemos em uma situação onde estivéssemos declarando o que queremos aqui, eu lhe diria que quero o enrolado vegetariano - apenas para que você saiba, qual seja o valor que isso tenha. Faça com essa informação o que desejar."
Eu me lembro de ter tido que fazer voltas correndo ao redor de uma quadra de basquete, enquanto nosso treinador ficava nas arquibancadas gritando "Sorry ("desculpa", em inglês) é a palavra mais mal utilizada da língua inglesa! Não me diga que você lamenta! Você não está lamentando. Ainda não!"
Um colega tinha deixado uma bola fora da caixa, quando deveríamos colocar todas lá. Quando o treinador nos mostrou isso, o jogador pronunciou um irreverente "Oh, lamento." Os olhos do treinador se arregalaram e ele nos fez dar voltas enquanto palestrava sobre o mau uso da palavra "Sorry" na juventude de hoje.
Honestamente, eu nunca tinha pensado nisso. Eu sempre usei a palavra como um reflexo. Eu esqueci que era a mesma palavra usada por autores para descrever prédios agrículas em ruína, crianças de rua de Dickensian que inspiram piedade, e pessoas cujas vidas estão minadas de tristeza.
Este uso inadequado, no entanto, tem sua razão para existir - a maioria das crianças são incentivadas a dizer "Sorry" ("perdão", em inglês) por anos antes de aprenderem que a palavra tem um significado além do costumeiro pedido de desculpas. Elas aprendem o que a palavra realmente significa apenas mais tarde.
Pelo mesmo motivo, a perversão da palavra "Please" ("por favor", em inglês) é ainda mais completa. Primeiramente a aprendemos, quando crianças, como um tipo de senha arbitrária que nos permite (geralmente) ter o que queremos. Normalmente o que queremos nos é vedado no momento em que expressamos que queremos - como se houvesse algo fundamentalmente errado em dizer que você quer algo - até que dizemos "Please". Alguns pais até chamam ela de "a palavra mágica".
A maioria de nós aprende um segundo sentido para a palavra please quando começamos a ler livros. Um pode "please" ("dar prazer", em inglês) o outro, fazendo algo legal para ele. Alguns nunca se dão conta de que o sentido é o mesmo, e que o "please" que dizemos quando queremos algo é apenas uma forma reduzida de "... se você sentir prazer". Então essencialmente é costume não pedirmos algo a alguém sem insistir que não quer que atendam seu pedido a menos que isso lhes cause genuinamente algum prazer em fazê-lo. "Me passe o sal, mas somente se fazer isso será uma experiência prazerosa para você. Não pediria isso em qualquer por qualquer outra razão."
Eu reconheço que dizer "por favor" é apenas educado e sei que repetimos frases que sabemos que são apropriadas sem realmente pensar sobre o que as palavras nelas realmente significam.
Ainda que eu ache que exista muito espaço para franqueza adicional na forma como falamos com os outros, eu não sou favorável à honestidade radical. Não há nada pior do que alguém que não se importa com boas maneiras, alegando que estão apenas sendo "reais" e que "não são de joguinhos, cara". Eu prefiro que haja joguinhos, mesmo isso sendo estúpido. Isso mostra que você não quer ser indiferente com relação às reações que causa nos outros.
Porém me fascina o quão rude é dizer exatamente o que você quer. Dizemos em alto e bom som aos nossos convidados "Bem, melhor eu começar a limpeza...", ao invés de "Gostaria que todos fossem embora agora." Quando foi que ficamos tão embaraçados pelos nossos desejos reais?
Talvez estejamos tão presos à ideia de que somos civilizados e igualitários que não queremos nos dar conta que ainda não chegamos lá. Parece que estamos fingindo que nossa cultura atingiu um nível tal de elegância que os desejos dos outros são simplesmente tão importantes quanto os nossos próprios. Se não, por que é que regras de boa conduta pregam que você deve dizer que só quer o sal passado para você se quem o alcançar sentirá prazer em fazê-lo?
Desta perspectiva, isso parece um senso fortemente enraizado de negação. Nós não somos tão generosos quanto gostaríamos de ser, e é rude não fingir que somos.
Este é apenas o meu palpite. Se você cresceu com isso, é difícil concluir de forma clara de onde isso vem. O que você acha?
Diferentes sociedades têm costumes também totalmente diferentes. Eu adoraria ouvir dos leitores sobre locais onde este tipo de hábitos linguísticos são significantemente diferentes dos do Canadá ou EUA. Quão ridículos são os conjuntos de costumes do seu local quando você realmente pensa sobre eles?
***
Foto de stevendepolo.
Esta é uma tradução livre do artigo de David Cain, no Raptitude, realizada por Alexandre Heitor Schmidt.